19.9.04

Fila de espera.

O que vai na memória de uma senhora
de 70 pedaços de anos incompletos?
Casamentos desfeitos?
Planos mortos?
alegrias irreparáveis?

Ninguém compreendeu sua inteligência
abstraiu-se por detrás das nuvens carregadas de chuva

Mas a lembrança não desperta a mágoa,
não arquiva a ira
apenas um silêncio
da compreensão que não gerou!

Um envelope bem fechado escrito:
Anônimo
Esse é o endereço do tédio

Sem destino,
amancebou-se com um ontem
rico em graças e descaminhos
do vinho, a sede
do damasco, o queijo
o sabor inseparável do desconhecido
o beijo sem rosto,
o amor sem corpo
o infinito prazer sem objeto
da fala ao veto
do escuro ao certo
do mar ao deserto

Oh! Procura incessante do gozo
que não se entendia existir
e a vida transcorreu
sem perceber que era preciso
parar, esperar
e possibilitar o amor jovem

Transcorria como para todos
até que surpreendeu-se sozinha,
igual e única
em sua inexplicável angústia

Ao perceber o conjunto de rugas
na base do seu colo,
avistou ali o fim da espera

ainda lúcida, inflou o peito
ao compreender
que essa foi a história
tão sua quanto seu desejo

Deitou-se à sombra, entregue à brisa
acalmou o infante habitante dos sonhos
deixou rolar a lágrima
da coragem adquirida

Sob a face ainda úmida de suas conquistas
pôde, agora, entregar-se ao destino.
Vivera a metade do que imaginava
sem ter-se permitido dormir ao relento
e amar sem arrependimento

Sentia-se com mais de 70 anos completos
julgava chegar o momento do sono
entregava-se à paz, como último desejo
Esquecendo que o fim
foi seu próprio abandono!

Hoje, só essa, pois calo na espera.

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